CAPACrédito e Cobrança

Cobrança em dia, saúde também?

Pressão por metas, inadimplência recorde e falta de suporte emocional: como humanizar a cobrança e evitar um ciclo de adoecimento para operadores, gestores e cliente

A rotina de metas, prazos e pressão por resultados é parte do jogo, especialmente para quem vive o universo da cobrança.

Mas e quando a cobrança começa a impactar o emocional de quem cobra e de quem é cobrado?

É aqui que surge um paradoxo que não podemos mais ignorar: enquanto buscamos recuperar dívidas financeiras, corremos o risco de acumular uma dívida invisível, a da saúde emocional.

Uma pesquisa de Harvard sobre profissões mais infelizes trouxe um dado que não pode ser ignorado: três das funções citadas estão diretamente ligadas ao setor de cobrança. É um alerta importante em um país onde mais de 70 milhões de pessoas convivem com dívidas e onde operadores de call center, gestores e analistas lidam todos os dias com pressão, metas agressivas e, muitas vezes, ausência de suporte emocional.

O contexto brasileiro só amplia essa equação. Inflação alta, crédito restrito e inadimplência recorde fazem da cobrança um trabalho cada vez mais necessário, mas também cada vez mais desgastante. O resultado é um ciclo de adoecimento: cresce o estresse, o burnout avança (já reconhecido pela Organização Mundial da Saúde1 como questão de saúde pública e classificado no Brasil como doença ocupacional2) e as empresas passam a lidar com perdas de produtividade, afastamentos e queda de reputação.

O eco da desumanização

Imagine-se em um momento de fragilidade: um problema de saúde, um desafio familiar, uma notícia devastadora. Nesse estado, empatia e compreensão fazem toda a diferença.

Agora, adicione a essa equação a rigidez implacável de um processo padrão. Você não é visto como alguém com história ou contexto; é apenas um “número” em uma planilha, uma “ocorrência” a ser resolvida rapidamente.

Esse é o eco da desumanização: quando o processo engessa a alma e ignora o ser humano. Infelizmente, ainda é assim que boa parte da cobrança acontece.

A jornada de Maria

Maria é operadora de cobrança. Todos os dias, chega ao trabalho com um nó no estômago. Sua mesa, em meio a centenas de outras, é palco de batalhas invisíveis. O telefone não para. Ela tem um script rígido, uma lista enorme de nomes e metas quase inatingíveis.

Um dia, Maria liga para João. É a terceira vez na semana. João já explicou que teve um imprevisto médico, mas a informação não foi registrada. Para Maria, significa repetir o processo. Para João, significa sentir-se invisível e desrespeitado.

Maria sabe que está sendo impessoal. Queria perguntar: “Sr. João, como o senhor está? Podemos pensar juntos em uma solução?”. Mas não pode. O script não permite.

Do outro lado, João, que sempre foi um bom cliente, sente que não é visto como pessoa, mas como “devedor”. A dívida, que já pesava, vira um fardo insuportável.

No fim, ambos saem perdendo: João se afasta da empresa e Maria termina o dia exausta, frustrada e ansiosa. A saúde emocional dos dois foi colocada em risco por um sistema cego.

Dados que escancaram a urgência

Esse não é um problema isolado. Ele é sistêmico, e os números mostram isso:

  • A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 12 bilhões de dias úteis sejam perdidos todos os anos por questões de saúde mental, o que representa um impacto de cerca de US$ 1 trilhão em produtividade globa1.
  • A McKinsey & Company indica que culturas organizacionais saudáveis apresentam um ROI até três vezes maior que aquelas tóxicas3.
  • A Fortune destacou, em maio de 2025, que a hustle culture precisa ser repensada urgentemente7.
  • No Brasil, o Ministério da Previdência Social registrou um aumento de 68% nos afastamentos por saúde mental entre 2023 e 20244.
  • A Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), em consonância com o Ministério da Previdência, aponta que 30% dos afastamentos por doença no país estão ligados a transtornos mentais, como burnout e ansiedade5.

No setor de cobrança, esses dados ganham contornos ainda mais graves: operadores adoecem sob pressão e clientes sofrem abordagens impessoais e repetitivas.

Caminhos possíveis

  • O colaborador é o primeiro cliente. Quem cobra é gente. Como essa pessoa é tratada impacta diretamente como ela tratará quem está do outro lado. Ambientes saudáveis, com escuta e autonomia, não apenas reduzem o adoecimento como aumentam produtividade e inteligência das próprias automações.
  • Entender quem é o cliente de verdade. A centralidade não acontece quando vendemos ou cobramos soluções prontas, mas quando ouvimos com profundidade, identificamos dores reais e cocriamos valor. Muitas vezes o que oferecemos é, na verdade, o nosso próprio problema, e não o do cliente.
  • Dados como bússola. Indicadores certos não servem apenas para medir performance, mas para ajustar rotas, priorizar recursos e evitar desperdícios. Na cobrança, isso significa segmentar perfis, personalizar comunicações e respeitar históricos.
  • Mudar exige visão e flexibilidade. Gerir cobrança é como subir uma montanha: é preciso clareza de rumo, mas também aceitação de que o caminho pode mudar. Pequenos passos de experimentação e aprendizado são tão estratégicos quanto uma grande visão.
  • Apoiar-se na NR01. A atualização da norma, ao reforçar riscos psicossociais, é uma oportunidade de estruturar políticas que cuidem da saúde emocional de quem cobra e de quem é cobrado.

E há ainda um ponto essencial: a qualidade das relações.
O estudo mais longo já conduzido pela Universidade de Harvard sobre felicidade concluiu que o segredo do bem-estar não está no acúmulo de riqueza, mas sim na qualidade dos vínculos humanos8. Esse aprendizado também vale para a cobrança: quando priorizamos relações de respeito, empatia e confiança, criamos resultados mais sustentáveis, tanto para pessoas quanto para empresas.

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Conclusão

Cobrança não precisa ser sinônimo de desgaste, medo ou adoecimento. Pode ser, ao contrário, espaço de conexão, de soluções mais humanas e de sustentabilidade para empresas e pessoas.

Quando escolhemos cuidar da saúde emocional junto com os resultados financeiros, criamos uma nova lógica: performance sustentável.

Afinal, cobrar com eficiência é também saber cuidar, dos números, das relações e das pessoas. Porque não existe futuro onde a saúde esteja no vermelho.


Referências

  1. Organização Mundial da Saúde (OMS). Relatórios sobre saúde mental.
  2. CNN Brasil (2022). Síndrome de burnout ganha nova classificação na OMS. 🔗 cnnbrasil.com.br
  3. McKinsey & Company. When building new businesses, culture matters. 🔗 mckinsey.com
  4. Ministério da Previdência Social (Brasil). Dados sobre afastamentos por saúde mental, 2023–2024.
  5. Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT). Relatórios sobre adoecimento mental relacionado ao trabalho.
  6. London Business School. Why does corporate culture matter to investors? 🔗 london.edu
  7. Fortune (2025). Why executives need to redefine what hustle culture means for employees. 🔗 fortune.com
  8. Harvard Health Publishing (2017). The secret to happiness? Here’s some advice from the longest-running study on happiness. 🔗 health.harvard.edu

Ale Rabin

Ale Rabin é, acima de tudo, humana. Mãe, ceramista e executiva com mais de 30 anos de experiência em empresas como Loggi, Johnson & Johnson, Yahoo, Vivo e UOL. Atuou em tecnologia, operações, experiência e sucesso do cliente, integrando dados, pessoas e estratégia. Fundadora do TATUdoBEM e cofundadora do Nós, também é conselheira TrendsInnovation, mentora e palestrante. Apaixonada por gente, conecta múltiplos papéis com visão nexialista e multicultural, unindo diversidade de ideias e culturas para gerar impacto real.

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