CAPA

Desrotulando: Humanizar é resistir aos atalhos

Os rótulos moldam percepções e decisões, mas também podem limitar oportunidades e silenciar talentos. Entenda como desrotular é um ato de resistência e humanização.

Os rótulos são interessantes e paradoxais. Revelam as características dos produtos e escondem o conteúdo das pessoas.” — Wallace Freitas

Vivemos a era dos filtros rápidos, dos modelos prontos, da eficiência que classifica antes de compreender. Em processos seletivos, avaliações de desempenho, algoritmos de triagem ou mesmo em interações cotidianas, a lógica da rotulação virou regra. Decidimos, em segundos, quem é bom, quem “tem perfil”, quem se encaixa. Mas… o que acontece quando deixamos os atalhos decidirem por nós?

Este texto é um convite a olhar mais de perto o que se esconde por trás dos rótulos — e a lembrar que humanizar, hoje, é um ato de resistência.

Rótulos são atalhos. Mas atalhos… para onde?

Rótulos são mecanismos de simplificação. Facilitam a vida em ambientes complexos, organizam o mundo em categorias. Mas, quando usados como filtro de entrada ou exclusão, transformam-se em ferramentas de descarte. Pior: muitas vezes, os rótulos vêm antes da escuta.

Eles já estão no currículo que “não tem linha do tempo ideal”, na pessoa “boa executora, mas pouco estratégica”, no profissional com “energia demais” ou “muito emocional”. A rotulação também está no silêncio diante de alguém que não carrega o tom de voz, o sotaque, o diploma ou a idade esperada.

Etarismo, gênero, raça: o corpo como primeiro filtro

Antes de qualquer fala, a aparência chega primeiro. Idade, gênero e cor moldam percepções instantâneas — muitas vezes inconscientes.

Pessoas com mais de 50 anos são vistas como “ultrapassadas”, mesmo tendo fôlego e repertório para contribuir por mais 30. Mulheres seguem sendo rotuladas como emocionais ou pouco estratégicas. Pessoas negras enfrentam o filtro invisível do “não tem fit”, “não combina com esse ambiente”, “não tem presença executiva”.

Essa discussão se conecta diretamente com outro artigoque escrevi: Meu local de fala: entre privilégios, responsabilidades e a coragem de abrir caminhos, que aprofunda os impactos das referências sociais e culturais na forma como rotulamos e somos rotulados.

A pergunta que não cala: presença executiva para quem? Moldada por quais referências?

Geração Z: entre a ousadia e o julgamento precoce

A Geração Z tem sido chamada de imediatista, frágil, sem resiliência ou visão de longo prazo. Mas será que estamos escutando, ou apenas rotulando?

O que muitos leem como “falta de comprometimento” pode ser, na verdade, recusa em aceitar lógicas tóxicas de trabalho. A “ansiedade” pode ser sinal de lucidez diante de um mundo instável. A “falta de foco” talvez seja apenas uma inquietação legítima de quem nasceu navegando múltiplos mundos.

Rotular jovens profissionais com base em preconceitos geracionais é uma forma de silenciar ideias novas antes que elas floresçam. Humanizar também é criar espaços onde todas as vozes possam ser escutadas, mesmo quando desafiam o que nos é confortável.

Os 50 de hoje não são os 50 de antigamente

A expectativa de vida mudou. A longevidade aumentou. Mas a forma como enxergamos a carreira após os 50 continua presa ao passado.

Quem chega a essa idade é tratado como fim de linha. Mas a realidade mostra outra coisa: há quem esteja só começando uma nova fase, reinventando sua atuação e criando valor de formas que o mercado ainda não aprendeu a reconhecer.

O problema é que o sistema ainda espera juventude com energia infinita e experiência com baixo custo — e não sabe muito bem o que fazer com quem tem os dois.

Tempo fora do mercado: pausa ou sentença?

Um “gap” no currículo costuma gerar suspeita. Mas pouco se pergunta o que aconteceu naquele tempo.

Transições, cuidado com familiares, dedicação à saúde mental, maternidade, projetos pessoais, sabáticos, estudos, trabalho informal — tudo isso vira um espaço em branco, e não um espaço de escuta.

Por que um tempo fora da lógica tradicional precisa ser justificado como falha, se pode ser fonte de crescimento?

Vivências híbridas: potência ou confusão?

Em um mundo que pede inovação e pensamento sistêmico, ainda assustam os perfis que transitam por áreas, linguagens e papéis.

Profissionais híbridos são vistos como “sem foco”. Mas são justamente essas trajetórias múltiplas que ampliam o repertório e a capacidade de criar conexões entre mundos distintos.

A lógica tradicional ainda valoriza o especialista previsível. Mas o futuro está pedindo navegadores de fronteiras.

Currículos formatados, objetivos prontos, resultados pasteurizados

A padronização também virou filtro. Esperamos que currículos contem histórias lineares. Esperamos que objetivos profissionais caibam em duas frases. Esperamos que resultados venham em bullet points, com ROI, CSAT, CAGR, CAC.

Quem escapa do script é visto como pouco estratégico, prolixo ou mal posicionado.
Mas será que o problema está na forma de contar — ou na forma como escutamos?

E quando o rótulo é automático?

Com o avanço da inteligência artificial, a rotulação ganhou escala. Sistemas treinados com dados históricos reproduzem os mesmos filtros que excluíram mulheres, pessoas negras, profissionais 50+, mães, migrantes, profissionais de trajetórias híbridas e tantos outros perfis fora da curva.

O algoritmo aprende com o passado. Mas, se esse passado já era enviesado, o que estamos ensinando às máquinas?

Humanizar é resistir

Humanizar não é negar a complexidade, nem tornar os processos mais lentos. É assumir a responsabilidade de decidir com consciência. É criar espaço para escuta. É valorizar o contexto antes da conclusão. É substituir o “não tem perfil” por “não conheço o suficiente para julgar”. É transformar os processos em encontros, não em triagens.

Inclusive, ao falar de bem-estar, pressões de performance e saúde mental, vale a leitura do artigo “Cobrança em dia, saúde também?, que complementa a discussão sobre os impactos humanos por trás dos números.

Desrotular é humanizar.
E humanizar é resistir à tentação de viver em um mundo padronizado, enviesado e previsível demais para comportar a potência humana.

Ale Rabin

Ale Rabin é, acima de tudo, humana. Mãe, ceramista e executiva com mais de 30 anos de experiência em empresas como Loggi, Johnson & Johnson, Yahoo, Vivo e UOL. Atuou em tecnologia, operações, experiência e sucesso do cliente, integrando dados, pessoas e estratégia. Fundadora do TATUdoBEM e cofundadora do Nós, também é conselheira TrendsInnovation, mentora e palestrante. Apaixonada por gente, conecta múltiplos papéis com visão nexialista e multicultural, unindo diversidade de ideias e culturas para gerar impacto real.

Artigos relacionados